Ter sido estúpido, insolente,
inquieto e inconveniente é a prova total e suada de que fui visceralmente
adolescente. É-se menino para umas regras, rapaz para outros ditames e já homem
para aqueloutras doutrinas, mas no fundo não se é nenhuma dessas coisas e a
indefinição caracteriza-nos com a mesma certeza com que o amanhã está-nos cravado
no coração a ponta de faca. Ah, a idade do hoje... Tal como o pintor tem a tela
em branco para desafiar e o músico o silêncio para romper, o adolescente tem
hoje como a maior das promessas e não há um nanosegundo a deixar cair. O mal
que fazemos só está na retina das interpretações alheias.
Quando me deu para fumar,
ainda acordava cedo, tinha as manhãs gris para cobrir de fumo, os AC/DC e o
Luís Filipe Gomes. Não por essa ordem. Fui irmão de todos. Ainda sou. Enquanto
encasaco os pulmões, ainda me sobra um solo do Angus para replicar e o Filipe
do outro lado do rio para me abrigar das tempestades deste sarilho dos
crescimentos que não me largam e me fazem brotar pêlos no orelhame. O Filipe e
eu sacamos sempre o miolo do que foi e deixamos umas côdeas do presente do que
nos tornámos para depois quando metemos a conversa no tabuleiro. Ele era moreno
e vivaz. Eu tinha um tirante a azul debaixo da testa. Ainda temos vestígios de
tudo isso, mas interessa-nos sempre o dantes. Sacámos alguma coisa do mundo como
dupla de tratantes e isso está nos livros que trazemos cá dentro.
Pisávamos as ruas a correr,
jurávamos que isto de sermos eu e ele era um nó de marinheiro indesatável,
gostávamos da primavera e de humedecer as excursões escolares com elas. As
segundas só nos mordiam quando os leões se esqueciam de deixar uma vitória a
nossos pés no dia anterior e o resto era sempre baunilha. A pretexto de
desporto, o nosso desprezo pelo mesmo viva no vale do Jamor, sobranceiro ao
qual crescemos. Descíamos de raquete na mão. Eu tinha sido mesa-tenista, ele
lesa-tenista. Melhor eu tinha feito parte fugaz da Escola de Ténis do Jamor da
qual fui expulso por encher a mão pela frente à Maggy Fontelas e o Filipe,
surfista dourado, refazia-se de ter abusado da Lúcia numa festa de garagem por,
após o beijo, querer enfiar o filete onde não ainda era suposto. Frescuras...
Para curar a falta de ação da
cintura para baixo, acalmámos ereções solitárias a descer para o Jamor a
brandir raquetes e desembainhadas que vinha aí chanfalho do grosso. Passámos
pela mata onde o Filipe tinha enfaixado o bólide do Rui Pedro uns meses antes
contra uma árvore que se meteu no caminho (ele ainda não sabia conduzir e
fugiu); cruzámos a junção da estrada onde dois anos depois a polícia me obrigou
a soprar no balão depois de aspirar um oceano de cerveja (eu ainda não sabia
beber mas safei-me porque ser filho do Israel dá jeito) e entrámos no court
(sem pagar, escusado dizer) e acendemos cada um o seu cacilho. Primeiro servi
de cigarro na boca. Não me saiu mal e o Filipe ficou majestático a vê-la
passar. 15-0 cá para o bijou e o primeiro jogo foi meu a cinco passas. Ele
empatou quando passou a servir e impressionou-me a refinagem de não cravar o
cigarro na beiçola e executar o serviço - gesto técnico dificílimo de dominar –
sem o desprender dos dedos indicador e médio da mão direita. Com a terra
barrenta do court a ganhar beatas como se fossem gafanhotos mortos de cu
laranja SG, a coisa pegou e o primeiro set em 6-6 careceu um esfumaçante
tie-break a pulmão aberto. Entre a neblina tabagística, executei uma esquerda
perfeita mas com um estalido de diferença: a morder o “naite”. Nem o Lucky Luke
disparava mais rápido que a própria sombra até o Morris o desintoxicar e passar
a desenhar de outra forma e lhe levar à boca um salubérrimo fio de feno e lhe
retirar o estoura-peito. Nisto, achava eu que tinha o Filipe e o “match” no
bolso onde só já morava meio maço e assomou pelo court um dos professores da
escola de ténis, de todos o mais temido. Como aluno expulso, já antes lhe tinha
tirado as medidas. Era filho de puta da parte do pai e um sarrabeco da parte da
mãe. Sem pedir licença (no ténis a etiqueta é tão essencial quanto água)
resfolegou por estarem “dois cabrõezinhos a fumar no court”. Bradou dois
sonoros “o que é esta merda”, expulsou os dois hereges do santuário e,
calculámos nós pela sua pinta de conquistador de urinol, que tenha depois
tentado seduzir dois cabritinhos da equipa de sub-14. Eu e o Filipe ainda hoje
desejamos que ele tenha acabado na pildra por assédio, de preferência coberto
por um daqueles negões de roça, dotados de um sarrafo tão grande que poderia
até usar relógio.
Um amigo comum topou-me a ser
enxotado do nobre complexo do Jamor com o Filipe como quem larga maus hábitos e
contou ao “dótór”. Pouco dado ao asneiral, o meu pai rosnou lá por casa, soube
da fumarada em sã área desportiva e sentenciou: “Se fazer merda fosse uma
cadeira lá na escola, tinhas 20.” Mentira. Perto de muito pirata que conheci,
era dez cêntimos de gente e esfolava-me para ter dez. Lá está, depende da
retina alheia e a do papá é só para nós.
Como ao lado do Filipe tenho
todo o alcoóleo açucarado do que fui e parece voltar num arroubo de energias
que julgava perdidas, vou ligar-lhe e é agora que daqui a pouco já não conta. É
quase cedo, apetece-me fumar e já sei onde deixei a raquete.
Essa do artista que escreveu
“todo o gesto é um sonho morto” e que “não há saudades mais dolorosas do que as
coisas que nunca foram” não jogou ténis, jamais se molhou em beijos a Guidas e
Lúcias e, de tudo o mais vital, nunca fez merda.
Tristes os que chegam a poetas
sem terem sido jovens.
Filipe Dias
Jornalista
O Canto da Psicologia
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