quarta-feira, 28 de junho de 2017

Quando o Snoopy e eu ganhámos a guerra aos adenóides...






(Adeus à tia Justina, que não pagava uma bica a ninguém mas sorria às crianças)

“Deita-te, que amanhã vais ser operado”, disseram-me como quem avisa que o mundo passará de muitas cores a preto e branco. Metia adenóides. Fui operado a isso e mais tarde à pele do penduricalho, mas essas são partes baixas e aqui fala-se de criancices por alto. Fiquei a pensar o que seriam adenóides (ainda hoje desconheço-os ao certo…), fitei os meus exemplares do “Snoopy e as mulheres” e “Snoopy sempre pronto” de 16x22 da Meribérica/Liber e senti que só tinha um amigo. Durante a noite tudo foi negrume, até porque a mamã não estava por ter ido à terra. Apagara-se o maçarico à tia Justina, que era avarenta e não passava cartucho a almas crescidas. Não lhes pagava nem uma bica, mas uma vez sorriu-me do alto da sua casa rosa, de estilo português suave ribatejano a trepar para as beiras. Dentro de um pijama chinês azul debruado a vermelho, perguntei ao mundo sem falar por que é que eu é que tinha de ser operado e não a Suzy pequena, que se ferrava ao meu lado. Adivinhava as lombas do livros do Spirou e do Astérix do Zezito que se tinham apagado à minha frente e agarrei-me ao Snoopy que agora não podia ler.


No caminho que a manhã seguinte sentenciou, houve Tejo a mais à minha direita até virarmos à esquerda para um hospital íngreme e inóspito que tinha o nome de um médico famoso por operar a cabeça às pessoas ou lá o que era. Descemos, eu, o paizola e a tia mais velha para umas catacumbas em azulejo e um puto chamado Emanuel, matulão e calhordas, miava agarrado à mãe e dizia-me do outro lado do corredor que me ia doer mais a mim que a ele. Era um puto com cara de grão de bico e cagarola, que ainda guinchou mais quando foi lá para dentro. Nunca lhe respondi porque ter os dois exemplares do Snoopy me conferia uma altivez maior que a os grandes. Sem largar os livros (os amigos nunca se deixam!), disseram-me depois para contar até dez e uma enfermeira das palpitantes perguntou-me onde é que tinha ido buscar uns olhos tão bonitos. Antes de sacar do “Snoopy e as mulheres” para ele me explicar como é que se fazia com elas, enfiaram-me uma máscara nos fagodes. Acordado, só descansei quando vi o valente do Snoopy ali ao meu lado em dois exemplares que não me deixaram ficar mal. A dores de gasganete, lá vim no regaço da tia mais velha para dias de mel e mais Snoopy na cama. Não tínhamos medo de ninguém e que viesse essa faca lá pelos gargomilos que haveria mais vida.

Umas semanas depois fui de fossas nasais refeitas às partilhas na casa rosa da tia Justina. A Suzy pequena passeava um carrinho de bebé e eu ordenei-lhe que roubasse o mais que pudesse e escondesse tudo no carro de brincar senão dava-lhe um atestanço de chapada. A tia Justina tinha vindo de Moçambique cheia de bagalhoça e artefactos retidos na Alfândega aos colonos e pretalhada antes das farruscadas. Bifámos lápis, cadernos, mas não havia livros do Snoopy, pelo que o saque foi uma desilusão. Mas a guerra estava ganha e nem era preciso mais do meu “beagle” para assinar a rendição incondicional dos adenóides. Li outra vez o Snoopy em 16x22 e percebi que nos íamos separar um dia, que já sem o meu rafeiro me ia acontecer muita coisa fora dos quadradinhos da imaginação.
Aconteceu.

P.S.: Desculpe-me por roubar, mas obrigado por sorrir, tia Justina. Para uma criança só com um cão de banda desenhada para se defender, isso vale o mundo.


Filipe Alexandre Dias
Jornalista



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