quinta-feira, 3 de agosto de 2017

O João sem medo...








O João não tinha medo… rugia aos monstros debaixo da cama com a mesma fúria com que batia com as portas lá de casa, aquando de um limite. Era exactamente a mesma forma como gritava o “NÂO!” salpicando com perdigotos de raiva o rosto da irmã mais velha.
O João não tinha medo…tratava por “tu” o escuro, que era sempre bom aliado para escurecer os disparates, e cumprimentava o dia que iluminava a sua força quando atirava a cadeira ao chão à frente dos colegas e da professora.
O João não tinha medo que o mundo fosse demasiado pequeno para todo o seu tamanho e espaço, que enchia a casa e fazia encolher pais e avós porque…o João “tinha uma personalidade forte”!
O João não tinha medo…embora fugisse ao silêncio, até a dormir, e parece-se petrificado aquando de um abraço, surgido do imprevisto cruzamento entre a ternura e o desespero da monitora do ATL.
O João não tinha medo…mas vivia apavorado com a “incontinência” do seu mundo interno, com a falsa infinidade do seu eu e com a inconsistência dos seus imagos parentais.

Os medos fazem parte integrante da construção interna e, consequentemente, de uma relação com o mundo e os outros mais saudável e sustentável. Porque o mundo é feito de pontes, sinais de STOP, vermelhos e verdes, gargalhadas e choros, muros e caminhos…e se enquanto crescermos não internalizarmos em nós essas mesmas pontes, vermelhos, muros e etc. como é que poderemos entender o mundo e os que estão à nossa volta?
Se não integrarmos um “não” como uma espera que dá a vez a um gesto que deverá anteceder aquele desejo\impulso, como poderemos respeitar o STOP que dá a prioridade a quem circula e se cruza à nossa frente?

O Dr. Eduardo de Sá dizia - As famílias têm o direito a alimentar os medos das crianças - claramente referindo-se aos medos saudáveis, não poderia estar mais de acordo. Perder o medo  no sentido mais invasivo e extremo, tenderá a significar perder a noção de si e do outro, porque não só coloca o sujeito numa procura incessante e desesperada de limites, como , o coloca à mercê de um desconhecido sem fim que alimentará um self omnipotente.

E porque também o nosso corpo tem o seu limite contentor último na pele, também a nossa mente só poderá sobreviver sã com limites que vamos construindo, redefinindo e avaliando ao longo da nossa existência. E entenda-se de forma muito clara que os limites não advém dos “nãos” ditos enfurecidos e castradoramente evocados nas relações entre pais e filhos. Os limites e regras advém mais eficazmente dos “nãos” que se vêem, sentem e experimentam implicitamente no nosso dia-a-dia, e confirmam e consolidam-se ainda mais a cada “sim” de um abraço, olhar e mimo que integram as interacções de miúdos e graúdos.

Uma criança sem limites será um adulto ao estilo de uma bola saltitona lançada de um primeiro andar para o meio de uma multidão numa loja de loiças, no fundo a aguardar ser travada e contida para minimizar o caos.
Tal como dizia o Dr. Eduardo de Sá a coragem não passará por não termos medos, mas por podermos não fugir deles, crescendo quando ousamos conhecê-los.


O João não tinha medo…mas vivia aterrorizado com a sua imensidão interna, na qual realidade e fantasia tantas vezes se confundiam e abraçavam. O João não tinha medo…e não tinha uma “personalidade forte”. Não existem personalidades fortes ou fracas, existem personalidades todas elas com as suas características mais frágeis e mais robustas. O João não tinha medo…e tinha todo um tempo para construir a sua personalidade com pontes, muros, gargalhadas, risos e choros, com medos e conquistas…tal como uma personalidade deve ser!



Drª Joana Cloetens
O Canto da Psicologia




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