A dor crónica é como aquele vizinho horrível que faz imenso barulho
e que não percebe (ou não quer perceber) o quanto é incomodativo. Uma pessoa
fala com ele a bem, até sorri de forma especial para cair nas suas boas graças,
na expectativa de que na próxima vez ele tenha mais cuidado. Mas não. Tal como
este vizinho que tantas vezes roça o insuportável e que não tem qualquer
intenção de mudar, a dor crónica teima em persistir para além do descanso, da
medicação, da alteração dos estilos de vida, e de todas as mudanças
introduzidas na esperança de que algo mude para melhor. Torna-se destrutiva,
arrasadora, capaz da mais profunda e perturbadora metamorfose.
Para piorar a situação, esta dor é muitas vezes invisível.
Um braço partido é engessado, uma cabeça partida é cosida, e o seu carácter
público parece que valida, pelo menos em parte, as queixas que daí podem
decorrer. Mas a dor crónica pode estar escondida dentro do corpo de quem a
sente, rastejando mesmo por baixo da pele, qual pequena térmita que vai
esburacando de forma incontrolável aquilo com que se depara. E parece que faz
gala em aparecer quando menos se precisa dela. Como se alguém, alguma vez, lhe
fosse sentir a falta…
Quando se sente necessidade e dificuldade em validar perante
o outro o sofrimento decorrente de uma dor que não se vê mas que se sente, e se
do lado de lá não houver um olhar empático, contentor e aceitante desta
fragilidade, esta dor pode-se tornar tão predominante em tudo quanto se faz que
passa a ser antecipada e catastrofizada; mesmo antes de ser sentida, já é arrasadora
e incapacitante, e nem se consegue conceber que talvez possa não ser assim. E
deixa de ser sentida só no corpo para passar a invadir, com uma força
avassaladora, até aqueles recantos que nem se sabia que existiam. Para lá dos
limites do aceitável, para lá da razão, entre a loucura e o desespero do que
ainda não está cá mas que certamente chegará.
Existem inúmeros estudos que relacionam a dor crónica com a
depressão, a ansiedade e a diminuição da qualidade de vida. Não sendo uma
relação inequívoca e invariável, parecendo ser possível viver com dor crónica
sem que haja sofrimento psicológico exagerado, o que é que nos protege?
Concebemos que algo em nós, seguramente. É necessário que se consiga manter a
integridade do self, mesmo perante
esta ameaça externa que se torna tão interna como só a dor crónica o consegue
fazer. Algo que funcione como guardião das portas que levam ao centro de nós, e
que impeça que nos desorganizemos perante tão intensa provação. Isto vem não só
do agora, dos nossos recursos atuais, mas também (e principalmente, diríamos
nós) daqueles que começaram a ser erigidos há muito, muito tempo, numa altura
em que não sabíamos onde terminava o outro e começávamos nós. Por outro lado, é
também determinante aquele que em nós investe e que por nós é investido, e que
dança com as nossas solicitações de suporte ao seu próprio ritmo. Quando esta
dança é harmoniosa, o encontro é feito de passos suaves e ligeiros, mesmo que
em terreno pantanoso. Mas caso haja uma desarmonia demasiado dura, cria-se um
fosso onde a dor, real ou antecipada, física ou psicológica, poderá
eventualmente proliferar.
Do nosso lado, nada podemos fazer para lutar contra a dor
que o corpo sente. Mas contra a dor que a alma grita, nessa já podemos ajudar,
lutando não por si mas consigo.
Drª Carolina Franco
O Canto da Psicologia
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