quarta-feira, 19 de abril de 2017

Então você é que é o filho do doutor?...






( Ida à Inspeção com o velho Plácido à espera no café e pronto a lixar um general, com o Tejo lá em baixo a ver tudo)

Até o rio parecia não me conhecer e eu só queria voltar a ter asma. Num rufo, senti-me apertado por uma infausta saudade de noites de pieira e vapores que me livrassem. Tropa não rimava com os meus horizontes, onde já moravam jornais, futebol, guitarras, sonhos, mulheres e tudo. Fui dos últimos a entrar antes de fecharem portas ao quartel. Ainda me passou pela marmita deixar-me entalar e assim fugir a um verão canicular entre magalas e a comer pastéis de bacalhau feitos nos sovacos. A encolher na distância, vi o velho Plácido, que me acompanhava e já fora promovido a avô (só há patentes entre amigos), descer a Calçada da Ajuda e dizer-me sem olhar para trás ao apontar os cavalos para o café: “Se der merda, estou aqui no Milhage.”

Entrei. Levava uma papelada em invólucro selado que o meu pai me passara a bufar por, nesses dias, cá o safardana esquecer-se de faculdades. Na parada, reconheci o Augusto e mais uma passarada lá do meu lado do vale. Estacionei entre a maralha e um gajo vestido de oliva avisava que agora pertencíamos ao Exército. Eu já não era o Filipe Dias. Muito menos o filho do doutor - o melhor que Filipe Dias poderia aspirar ser. Eu era abaixo de cão. Pior: era abaixo de Filipe Dias. Pensei um “foda-se” sem o verbalizar e tirei o brinco como quem larga um hábito mau.

“Quem é o 151???”, ladrou um gajo cuja graduação jamais decifraria enquanto me testavam a visão em cinco segundos. Redargui que era eu, esperançoso, e encaminharam-me para um gabinete. No destino, abraça-me alguém folgazão, todo gris da farda até ao gasganete e de chapas refulgentes. Indagou de chapa e em tom cúmplice: “Então você é que é o filho do doutor?...” Senti-me perpassado pelo frescor de uma brisa, cortada logo de seguida pelo amigo repentino que afinal só ia a meio: “...a tropa agora não custa nada. É em menos de um cartucho. Abraço ao pai. Vá lá...”

Fui reconduzido para o meio do granel. Ainda levava os papéis-mistério. Dois exames depois e outra vez o brado: “Esse 151?” (começava a ser cliente). Respondi que ali estava com marcial obediência e julgo-me atalhado para o real livramento quando outro general, coronel, marechal ou marechel ou lá o que era essa porra, me recebe. Aquele tinha outro porte. Majestático, anafado e com um chanfalho à cintura. “Olhe lá, o doutor está porreiro?”, despejou-me à entrada para tudo me saber à sofreguidão de um “é agora”. “Qualquer coisa, fale comigo. Isto é só seis meses, pá. Boa sorte. Diga lá ao pai que se deixe de sportinguices que isso só traz tristezas.” E o cabrão ainda gargalhou a recolocar-me na Inspeção com esta para salgar a ferida. À terceira para o meio da canzoada. Desanimei no intervalo para almoço. Dei um pulo ao Milhage e lá está o avô Plácido. Lia um livro encarquilhado do Nuno Bragança e prometeu-me que, se ficasse apto, fazíamos um penálti em casa do general Pezarat Correia, que lhe devia favores em Moçambique e mais: se não jogasse à bola na nossa equipa, o meu velho punha cá fora toda a podridão ultramarina que lhe conhecia. Cheirou-me a trote, mas agradeci a amizade.
Tentei comer. Não comi.

Para a segunda parte, estava entre a cáfila com medo que me apertassem o tomatal e me obrigassem a tossir como tinha visto num filme, quando fui solicitado por um malandrim de bata. Fez-me trejeitos de segredos quase sem falar e à laia de transa ilegal. Sacou-me a papelada. Senti-me nada e sem nada.
Desenhava arabescos em exames escritos psico-qualquer-merda a imaginar-me a acordar sempre cedo (tortura medieval!). Nisto, houve abordagem nova do mangas que só ouvi dizer “151”. Fomos à sorrelfa. Sala vazia. Outra bata com uma pessoa inexpressiva lá dentro virou logo a cara ao entregar-me uma folha de soltura. Rosnou de saída: “Pira-te. Os atestados que trazias até mandavam o Rambo para o Convento das Carmelitas Descalças...”
Eram 16h e qualquer coisa e eu já não ia à tropa. Soltei o grito, fiz um pirete do outro lado da estrada ao quartel. Desci Lisboa com o Plácido, ele afivelou aquele seu brilhante sorriso sem dentes face ao desfecho e nunca soubemos que doenças me inventaram. Ser inapto era uma experiência gloriosa e até o Pezarat Correia podia viver pelo menos mais um dia. Bebemos e fumámos uma bela conversa em Belém. Fiz o favor de não ouvir todos os conselhos do meu avô e jurei que a partir dali ia ser tudo o que devia. Cometi a fineza de não cumprir.

Anos antes, andava por cá há sete, operaram-me aos adenóides e foi bom porque não morri. Vinha de carro no regaço da tia Maria Luísa. Como ainda punha o cenário de me apagar, levantei a cabeça e olhei pela janela à procura de alguém mais que fizesse tudo melhor; que tirasse as dores; eu queria que me acontecesse muito mundo. Vi o Tejo. Pareceu-me azul e vívido. Gostei dele porque onde Tolan estava de barriga para cima a estragar o quadro era lá mais atrás. As dores passaram devagarinho, como por visão aquática de magia. Senti no rio mais um amigo e fui crescer a salvo para casa.

Ainda hoje desconfio que aquela bravata da Inspeção foi obra do meu pai, do meu avô, daquela canalha militar e até do Tejo. Deviam estar todos a brincar comigo.

Filipe Alexandre Dias
Jornalista





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