Sílvia surge na primeira sessão, com a excitação e o
brilho nos olhos de um primeiro dia de aulas. Bonita e de sorriso fácil, com
desenvoltura diz ao que vem: “eu estava numa relação e não sei o que aconteceu…
quero perceber porquê… quero conhecer-me melhor, talvez ser mais feliz” (sic).
Nascida
em local longínquo, vem para a cidade para estudar e para se “fazer mulher”
(sic), diz-nos. Longe de tudo o que lhe era comum, de todos os que lhe eram
familiares e empenhada nos seus desideratos de afirmação pessoal e profissional,
a sua extroversão e à vontade e o seu jeito brincalhão, até provocador,
permitem-lhe um percurso académico folgado, pejado de variadas, boas e
proveitosas experiências enquanto estudante, mulher e - crê Sílvia - pessoa.
No plano
relacional íntimo, nem tudo foi tão agradável. Indecisa e inconformada de
carácter, apesar de alguns relacionamentos mais longos (não estruturados),
acaba por nunca investir, realmente, num relacionamento dito sério, pois nunca chega a ter certezas, nunca chega a
comprometer-se, muito menos a amar, porquanto ninguém a fez sentir segura e
confiante para tal. Ainda na ressaca do último desses relacionamentos, cujo epílogo
foi prolongado, encontrava-se, relata, pouco disponível para quem quer que
fosse, muito menos para uma outra relação.
Mas, sem
que nada o fizesse prever, sem se anunciar ou fazer anunciar, alguém novo
chega, acontece, impõe-se e afirma-se no seu mundo perceptivo e no seu
quotidiano. De estilo obstinado e até algo austero, ele foi aguentando as suas
recusas sucessivas, ignorando de (de forma obstinada, quiçá teimosa) os seus
inicialmente firmes e determinados “nãos”, debelando os descontos que ela nele
retorquia, testemunhos de um passado recente pouco securizante, acima melhor
epitomado. Eis que as resistências se começam a esbater e se transformam,
depois, em apenas indecisões e dúvidas, que ele, no seu estilo confiante e
afirmativo vai dissipando, numa lógica subsidiária do dito popular “água mole
em pedra dura, tanto bate até que fura”. Na verdade, ele até era “um homem
interessante… bonito que baste, inteligente, teimoso, mas determinado e, claro,
seguro” (sic). Ela finalmente abre uma brecha na muralha já em ruínas e deixa-o
entrar. Ele, ao seu estilo, não entra na relação e no íntimo dela ao de leve…
fá-lo de forma estrondosa e inabalável… apregoa-lhe que já sabe, que está ali tudo, ela é a tal, aquela
pela qual sempre esperou, não há mais dúvidas, indecisões ou desconfianças;
convence-a, de tão convencido que lhe parece, que é o destino, já estava
escrito… eis a mulher da sua vida, a sua
deusa. Para ela, abalada e estarrecida, por fim e aparentemente, o amor. Sílvia,
pela primeira vez, acredita. Entrega-se de corpo e alma. Faz por e para ele o
que nunca fez para e por ninguém. Mais, faz por ele o que nunca se julgou poder
fazer, por descrença pessoal nessa coisa de que tanto tinha ouvido falar, mas
aparentemente nunca tinha sentido. Os primeiros meses são óptimos, sente-se
deveras feliz. Partilham e comungam, conhecem as famílias e amigos um do outro,
sentem e vivem experiências, desenham planos de e para o futuro. O mundo é
deles.
Mas, de
quando em vez, primeiro rara, depois frequentemente, ocorriam pequenos
desaguisados - nada de anormal numa qualquer relação. Porém, feitas as contas
“do deve e haver” relacional no final ou a
posteriori dessas desavenças, a culpa (diríamos responsabilidade) era
sempre dela. “Acabava sempre as discussões com a impressão que eu é que tinha
feito algo de mal” (sic). Uma hipersensibilidade a qualquer atitude ou comportamento
dela, que saísse do registo estrito da sua expectativa e “bom senso”, lançava-o
numa postura de introversão, quase mutismo, que a agitavam sobremaneira e a
levavam, já algo exasperada, a interpelá-lo bruscamente, confessa. Já depois de
ela perder o controlo, ele, impávido e sereno, dissertava acerca de como ela
era “agressiva, impulsiva e inconsequente” e de como isso o magoava e colocava
a relação em risco. A pouco e pouco, ela tornava-se refém da sua própria
reacção às atitudes dele e, também por isso e aí sim, culpabilizada e
constantemente receosa de o perder. Todavia ia reagindo, ia tentando, ainda que
à mínima e cada vez menos, expressar o que pensava e sentia sobre isso e tudo o
resto, mas, conta, “sempre a medo” (sic).
Pouco tempo volvido, mais uma dessas simples discórdias degenera numa
ruptura abrupta, sem explicações ou contemplações, que transcendam o simples e
cortante “para mim não dá mais, não posso continuar assim” - as últimas
palavras que dele ouviu ou leu, na última vez que o viu, ou que sequer teve
qualquer tipo de sinal, directo ou indirecto, da existência dele.
O mundo
de Sílvia desaba e o chão desaparece. Tomba num precipício de incompreensão,
tristeza e desespero… mas também culpabilidade, auto-comiseração e auto-desvalorização.
Felizmente - vem percebê-lo depois, com o avançar da psicoterapia - este evento
irá revelar-se um mal não só necessário, como apenas tardio. Pensando(-se) na
intimidade e segurança do contexto psicoterapêutico, gradualmente
desprendendo-se da ilusão e bruma pouco sadia que a envolvia, vem a descobrir
(entenda-se aceder a) uma série de aspectos, episódios, dinâmicas e suas
vicissitudes, de quem julgava conhecer. Percebe, então, do que e de quem se
libertou. “Afinal, estava tudo lá” (sic). Fala com propriedade e razão: o
engodo fora perfeito: a confiança, obstinação e determinação camuflavam um
autoritarismo e omnipotência narcísica, que não reconhece as idiossincrasias do
outro, a hipersensibilidade e atitude passivo-agressiva que apenas aspiram à manipulação
e controlo desse, bem como a intransigência e frieza no conflito e na despedida, testemunhas do vácuo relacional.
Em suma: estava lá o
protótipo da famigerada relação tóxica. Relação duplamente nociva: destruidora
do e no seu tempo, potencialmente destrutiva do devir, pelas feridas
psicológicas que inscreve no psiquismo; feridas só eventualmente cicatrizáveis
no seio do ensejo psicoterapêutico. Relação a que muitos entre nós estão sujeitos,
por força da particularidade da sua personalidade e dos tempos que vivemos. Afinal,
quem nos tempos dos humanos mediaticamente endeusados, recusaria ser o/a
deus(a) de alguém, ainda que breve e ilusoriamente?
Dr. Pedro Rodrigues Anjos
O Canto da Psicologia
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