Duarte Sousa não soa nem
ressoa a nome de negro. No caso, até nem era. Foi maneira de lhe colonizarem o
guineense Bite Babi Sadjá mais qualquer coisa que agora não me recordo. Tenho a
certeza que o nome original acabava em Mangonga. O Sousa é um preto bestial e é
da família. Da etnia papel ou manjaco. Não interessa. Interessava é que não era
bijagó, uma maralha canibal que nunca dizia não a chicha da humana. Voltemos à
civilização e ao nosso Sousa.
O Sousa mentia sempre a falar
da idade e isso era porreiro. Tornava-o ainda mais misterioso e retinto na sua
negritude, a mesma que dava exotismo ao bolor das visitas que de quando em
quando nos saíam na rifa lá em casa. Acho que ele nem percebia que mentia nos
anos que levava disto e nós já nem nos importávamos em saber a verdade. A
verdade pode aparecer vestida de uma inconveniência terrível e mais vale uma
mentirinha em pelota para animar o pedacinho. Com o Sousa, a verdade é uma
coisa com a qual se tomam liberdades no maior descaso e está muito bem assim.
O Sousa deu por cá com os
ossos para estudar Medicina depois da farruscada do Ultramar. Tinha estado do
lado português durante a guerra e fez-se ao piso por Lisboa para não aparecer
pendurado ainda a espernear num candeeiro em Bissau. (Em Bissau acho que já não
sobram candeeiros...). Conheceu o meu velhote lá na África - que foi lusa - e
intercalava os estudos num centro na Faculdade de Motricidade Humana - que foi
ISEF e INEF - a forçar a minha mãe a esmerar-se na cozinha. A constituição
esquálida do Sousa enganava porque quando o gajo desatava a dar ao serrote era
um meter para dentro medonho no decurso do qual era avisado afastar as mãos da
mesa. Para mim e para a pirralha que me acusava de ser seu irmão, as visitas do
Sousa eram um alegrete. Montávamo-nos no gajo, coçávamos-lhe a carapinha,
apertávamos-lhe o nariz abatatado e pasmávamo-nos com as suas palmas da mão
rosáceas. Ele ria-se na maior placidez e era de uma ternura desarmante.
Lembro-me de o topar absorto a ver o 1,2,3 na caixa colorida e a levantar a
gambiarra esquerda para a segurar pelo joelho. Era a sua pose mais senhoril. O
Sousa sabia de números, ainda me deu umas inúteis explicações aritméticas e
ensinou-me a dizer como te chamas em russo, o que me foi tão útil quanto fixar
axiomas de psicologia social. Achamos que o artista nunca acabou o curso e
andou a exercer de bata na maior desfaçatez até lhe descobrirem a careca, mas
essas são as mentiras que me enternecem. O meu pai também se recorda de lhe
voltar a perguntar a idade e, ao fazer contas a retroceder perante a resposta,
chegar à conclusão que o sr. Mangonga afinal tinha sido sargento com 14 anos...
Quando se pergunta algo ao Sousa sobre a sua biografia em constante
atualização, ele fala de forma envolvente, vozinha melíflua... e ficamos sem
perceber nada.
Mas o Sousa já me foi buscar
aos infernos e isso não se esquece. Num reação violenta à penicilina, foi ele
que me deu o antídoto. Ainda me ajudou a driblar a asma e outras bronquites.
Quando o sentia subir as escadas até ao quarto cá do brotas como quem passa
pelo restolho, sabia que o amanhã estava garantido. Também foi o nosso
escurinho quem me curou a primeira ressaca, que me deixou a caldinhos durante
uma semana.
Lá por casa há mais que um
cão. O que aqui vem à conversa também começou por ter um nome e depois outro.
Para mim, é o Pirata. Um rafeirola catita, mas que sai sempre desiludido comigo
da sessão de festas. Pressente que eu tenho outros planos logo a seguir e acha
tudo aquilo um fingimento de merda da minha parte. Haveremos de conversar sobre
isso. Acontece que agora o nosso Pirata anda mal do pernil traseiro e tem lesão
de jogador de futebol: rotura de ligamentos. O nosso felpudo perna de pau está
fora do jogo de domingo, tem a época em risco, mas claro que lhe vamos renovar
contrato porque sem ele não somos a mesma equipa. Ele gosta que o Sousa apareça,
tome-se nota.
Uma vez, um senhor, perdão,
uma besta sem par, disse-me isto: “Primeiro branco, depois cão e depois preto!”
Espero que quem mo disse tenha tido um AVC testicular.
Ligaram-me há pouco a dizer
que passaram-se momentos porreiros lá da casa onde isto começou para mim e
andei décadas a mamar na teta da vaca. Parece que o Sousa - que agora andava
por Londres a fazer algo que nunca perceberemos -, apareceu de supetão à porta
com um saco de plástico roto e uns livros na mão, meteu meio quilo de bacalhau
no bucho e fez serão a cuidar em mimices do Pirata, que começou a morsegar-lhe
a cara na brincadeira e até ficou melhor do amortecedor.
Não apareci para andar a aqui
a escrever calamidades.
Primeiro o Sousa, o Perna de
Pau e todos vocês, que fazem o que está bem e fazer bem estar com os amigos.
Em solidão de letras tortas
depois venho eu... muito depois.
Filipe Alexandre Dias
Jornalista
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