O homem-brisa nunca levantou a
voz, deslizava de pasteleira sem mãos pela estrada e não havia curva nem
contracurva que o vencesse. Queria ser aprendiz de serralheiro, mas foi dar com
os ossos a Angola, depois de umas chumbadas na instrução primária, uma guarda
ocasional das redes da equipa de futebol lá da terra e uma adolescência de
baixo ventre viçoso e ativíssimo, à boa maneira do picha de açúcar que nunca
desilude saia amiga por campos e hortas.
O homem-brisa nem sequer se
chateou quando levou dois estilhaços no pername numa picada africana e regressou
da guerra como quem tinha ido só ali à venda buscar meia onça de tabaco. Casou,
foi de mecânico a lapidador de diamantes e não cuspiu no fado quando o último
ofício o deixou parcialmente surdo. Encarou tudo com um grão de sal porque a
vida é isto mesmo e, antes, fez dois filhos igualmente plácidos de juízo e bons
de mãos.
O homem-brisa agarra em tudo o
que é tralha para fazer muita coisa a partir de quase nada. De dois carros, fez
um. Chamou-lhe Bolinhas.
O homem-brisa também não foi
por arrelios quando - já cá aqui com o brotas
no pedaço só para atrapalhar -, me tentou ensinar a pescar e nadar a
todo o Tejo, assistindo com a brandura dos justos a todas as minhas falhas
miseráveis.
O homem-brisa tinha umas
galdinas Levi’s de bombazine à boca de sino que ainda lhe tentei gamar em vão.
O homem-brisa é um homem
bonito, do rosto ao coração.
Quando penso no homem-brisa
nesta estupidez que tem sido a minha existência, irrito-me e sinto a cabeça a
arder por não estamos mais vezes juntos só para conversarmos tudo a dizer
pouco.
O homem-brisa foi filho, é
irmão, pai e tio. Meu tio. O tio Ernesto.
Nunca levantou a voz. Deve ser
feliz.
FILIPE ALEXANDRE DIAS
Jornalista
O CANTO DA PSICOLOGIA
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