quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

Pais e filhos no mesmo armário...








... da clareira partiam dois caminhos,
os dois clássicos de todas as histórias de encantos e prodígios:
um asfaltado, cómodo, ladeado de amendoeiras em flor;
o outro, pedregoso e eriçado de espinhos, urtigas e urzes...
         (...)
- És a fada dos dois caminhos?...
- Bem, bem. Deixa-te de lérias - impacientou-se João Sem Medo.
- E, já agora, toma a sério o teu papel de fada e aconselha-me
qual dos caminhos devo seguir: o asfaltado ou o dos pedregulhos? 
- Olha menino - elucidou o contínuo.....o bom caminho conduz à Felicidade.
E o mau, à infelicidade...
- Vou pelo bom caminho, como é costume, claro - resolveu João Sem Medo,
 embora desconfiado de tanta facilidade aparente. - O contrário seria idiota e doentio. 
Entretanto no caminho da Felicidade surge um descabeçado que diz:
- Que a paz e a estupidez sejam contigo. Vens preparado para a operação?
- Que operação? - interrogou João Sem Medo, suspeitoso.
    (...)
- Ninguém pode seguir o caminho asfaltado que leva à Felicidade Completa
 sem se sujeitar a este programa bem óbvio. Primeiro:
consentir que lhe cortem a cabeça para não pensar,
 não ter opinião nem criar piolhos ou ideias perigosas.
 Segundo e último: trazer nos pés e nas mãos correntes de ouro...
    (...)
- Não, nunca. Então prefiro o outro caminho. 
- Palerma! - lamuriou o guarda ( descabeçado) com os olhos
do peito marejados de lágrimas sinceras.
Vais passar fome, sofrer dias de terror aflito...

Quantas vezes ouvimos a expressão: “está na fase do armário” quando nos referimos a um adolescente? E os pais? Estas mudanças não são só nos adolescentes. Hoje, o nosso desafio, é  colocar pais e filhos dentro do mesmo armário!
A adolescência é uma fase de desenvolvimento complexa e que acarreta um conjunto diversificado de desafios (de diversa natureza: psicológica, física, emocional e social), não só face ao próprio como a todo o sistema de relações – relação com o próprio, relação com os pais, família e relações sociais.
Por um lado, temos as modificações físicas típicas já tão conhecidas nesta fase (as quais variam consoante se trata de uma rapariga ou rapaz), aliadas às competências físicas que se alteram e ao desenvolvimento da maturidade sexual (início da sexualidade e intimidade) regulada pelas hormonas. Além das mudanças físicas que operam num plano concreto e visível temos também aquelas que operam a um plano mais subjectivo – o desejo e vontade de se autonomizar sobre um corpo, simbolicamente até aí, "pertença" dos pais – essencialmente ao nível de tarefas como por exemplo, o vestir, o pentear, por creme, etc.
Esta reestruturação na forma como o adolescente se vê a si também actua na forma como vê os outros, permitindo este processo que se possa ir instalando um outro, de individualização e procura de autonomia nos contextos sociais. O aumento do desejo e da necessidade de exploração de novos ambientes fora do eixo familiar, o querer cada vez maior de pensar sobre e por si próprio anda de mãos dadas com a vontade de tomar decisões e, quando tomamos decisões temos sempre responsabilidade sobre as mesmas. Tal como o João Sem Medo, que escolhe o caminho da infelicidade regulando, ele próprio, a possibilidade de pensar e criar piolhos na cabeça…
O querer crescer, o querer pensar sobre si, o querer caminhar com outros não elimina, contamina ou diminui a necessidade de apoio e suporte familiar, apenas requer que possa existir um espaço contentor e securizante de transformação na expressão destas necessidades e na forma como se espera receber este mesmo apoio (sendo diferente de fases anteriores).
Todas estas mudanças (a par da conquista de uma maior autonomia) até então tão desejadas são fonte de grande ansiedade e insegurança, não só para o jovem – que a passo e passo vai flutuando entre os momentos da pequenez da infância e do jovem que já vai começando a ser capaz de pensar e agir sobre si-, como para os pais – na medida em que todas estas transformações geram movimentos no sistema familiar que requerem, muitas vezes, reorganização parental, do casal e da própria família. De forma transversal demandam, ao longo do tempo, uma reorganização no sistema de ligações (no que se refere aos papeis) como a uma reorganização da comunicação. Inerentemente olhamos para uma dualidade entre a independência e a existência ou estabelecimento de limites consistentes e resultantes da funcionalidade do próprio sistema familiar em momentos anteriores.
Se nos posicionarmos num local e num momento em que a “separação” dos filhos da família nuclear é um objectivo não só muito importante, como arriscaria a dizer essencial, no que se refere à saúde mental dos indivíduos e das famílias, este poderá também estar sujeito a um conjunto de forças ambivalentes muito importantes em que operam vários factores, dos quais: as expectativas dos pais – ou seja, a forma como os pais percepcionam, compreendem e representam as alterações e transformações do adolescente; a reorganização identitária dos pais e, claro, a forma como os próprios pais lidaram com as suas mudanças em adolescentes. Sendo um grande desafio para os pais, neste momento de grandes transformações, poderem recordar a forma como também eles fizeram estas separações enquanto adolescentes.

É essencial que todas estas mudanças possam ser pensadas, compreendidas e elaboradas de forma a poderem ir sendo, passo a passo, integradas nesta identidade que se está cada vez mais a formar e a desenvolver.


Drª Inês Lamares
O Canto da Psicologia




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