quarta-feira, 3 de maio de 2017

Ir lá e pagar, com duas gotas de vinho na canja...





(Homenagem sentida ao avô Joaquim, que as mulheres diziam ter açúcar entre as pernas e isso inunda-me de orgulho)

Quando há dedos que tamborilam numa mesa, um vetusto hábito que se perde quando não há nada nas mãos para levar a bom uso, a memória do avô Joaquim aparece de supetão e alapa-se nas cadeiras de verga que me sentaram a meninice.

Joaquim. Joaquim Lourenço Grossinho. O Joaquim Pereira porque foi assim que ficou. Rompia pelas manhãs de automóvel (a carroça de estalo comprada na Feira de Abrantes com os ávaros escudos reunidos) e movida à palha tragada pelo motor que era a Castanha (uma montanha em forma de mula). Gostava loucuras do meu avô. Ele falava comigo sem dizer nada e o único afago que dele recebi foram beliscões porque as delicodoçuras nunca tiveram lugar no campo que eu visitava para pôr todas as urbanidades de lado em banhos de alguidar.

Já aqui falei que ele não falava, mas também aprendi depois que não é a falar que se faz o que a mamã natureza manda. Ora Joaquim foi seco, muito azul resplandecente dos olhos até ao ultimo suspiro e tão rijo quanto o dia é longo. Pelo corpo todo, como prazenteiramente se infere. No viço dos anos verdes, suava a dois tempos: primeiro na jorna agrícola e depois ao descobrir saia fácil, amiga, a pedir labor. Consta que houve criação bastarda fruto do baixo ventre indomável de Joaquim. Nada provado no papel, mas tudo decorado na ponta da língua viperina da matilha quadrilheira. Um casamento serôdio e duas filhas depois, a gadanha da viuvez deixou-o a sós com a tristeza, mas nunca com as obrigações que se impunham da cintura para baixo. Campeão de danças, conta-se que arrastava bem o pé, roçava o pentelho como ninguém e, contas feitas, daí o proveito de estoira-varas do qual, honra à sua memória, jamais se ufanou.

Muito antes de mim, o nosso Joaquim Picha d'Açúcar teimou em não deixar órfã qualquer ereção (coisa muito feia, não subsistem dúvidas) e escondia criadas-amantes em potes hercúleos de vinho - um marido que já não cabia nas portas desconfiou, foi ao lagar do meu antepassado onde o só havia ação e nenhum béu-béu (o meu avô não falava, repito) e descobriu a senhora de má nota no pote - acho que ficou Teresa do Pote para a vida.

Uma velhota, a cada vez que a carreta do Joaquim passava cansada, cuspia-lhe acusações. Que lhe enchera a filha com outra filha nunca assumida. Joaquim sempre reagiu telegráfico: "Eu quando lá ia pagava!". A carreta seguia mansa e sem mais.

Como nem tudo é dar ao quadril, Joaquim guardava os cobres e níqueis do campesinato e viveu uma vida frugal. Metia vinho na canja e cortava melancia como os melhores. Uma vez, pelo Natal, deu-me 50 paus para eu dividir com a minha irmã e estive sem lhe falar até ao Natal seguinte (ou quase...). Dei o troco quando lhe acertei com uma bola de cautchú em cheio no tomatal e se calhar foi aí que ele amansou o maçarico.

O que sei é que ele foi meu avô e eu o seu único neto-rapaz. Gostámos muito um do outro e nunca o confessámos porque entre homens essas coisas não se dizem. Redimi-me de lhe acertar com o couro na aparelhagem anos depois, quando ele, passarinho engaiolado, passou meses lá em casa na periferia da capital e eu lhe fazia a barba. Era pisar terreno pantanoso, tamanhas as covas que ele elevava a meter a língua no bochechame. Nunca o cortei. Uma vez, serviço feito, e já a espetar-lhe toalhas quentes nos fagodes como se faz a cavalheiro dos antigos, perguntei-lhe quando é que ele me dava algum pelo esforço. "Deus há-de te pagar", respondeu ele. Acho que voltámos a falar umas quantas vezes depois disso. Lá na terra, nunca lhe perguntei se aquele senhor ou senhora parecidos que passavam eram meus tios.
Foi um homem bom. Morreu devagar.

À míngua de vinho para a canja e depois de anos a falar demasiado que me valeram menos do que mais atividade sexual, haja um consolo quem deixe dormir: eu fiz a barba ao meu avô.

Fiz poucas coisas melhores desde aí.

FILIPE ALEXANDRE DIAS
O Canto da Psicologia


Sem comentários:

Enviar um comentário